anoitecer

ergue a cabeça, não se entristeça: uma estrela vigia por você.
descobri estar longe de um porto pra desembarcar. estrelas do mar morto vão iluminar os olhos dos cegos,, reacender faróis que já deixaram de girar porque a noite vem, não tarda. o sereno vem com o frio. a lua joga a luz no quintal. a luz do sol se vai com o rio e toda verdade é banal porque a noite vem e transforma meninos em meninas e tal, meninas em princesas, em abóboras. o sapo em galã principal. as nuvens trocam de cores, amantes trocam de amores, e os corações de lugar porque a noite vem, não tarda. no céu se estica a lona que eu furo com o dedo a espiar. à noite eu pego carona num carrossel estelar. abraços sejam bem vindos, de onde eu estou indo não vou voltar.

estandarte

flores, cores coroando coronários coriscantes, antes flanelados, hasteados e bordados com um guerreiro estampando um brasão contra o sopro do dragão. dores, torres torneando torturados tolerantes, antes valorosos, temerosos dos temores de temer não escapar do arpão infalível da missão de receber a flecha que lhe cabe ao peito - não se fecha, abre alas, pra eu passar com meu andor em direção ao que me vem na contra-mão. e quem quer dormir num campo rodeado de lírio enquanto a lua vigia o sono embalar? dispensa o medo e vê se engole o óleo azedo e vê que doce é o segredo de se libertar. chora que a ferida sara. calma se o que dói é a alma. se um fitilho orna a coragem, toda dor é de passagem e a viagem é seguir. fala que a tormenta cala. chora que a ferida sara. junta o que de um todo, em cada parte, num retalho, um estandarte, e o caminho vai se abrir.
isabelas

ela - nunca vi só coisa bela, feito aquarela na tela - e a cera escorrendo da vela pinga em mim. na sua saia de renda vai, na orelha uma vai, feito um piercing, a memória, uma história pra se contar. se um abalo um deslize vem, chuva sob a marquise, tem terra no seu sorriso - ouço um guizo silenciar. vestida de renda grossa não há quem possa, menina, te ver sem te adorar. lança sua trança e me roça, que a dança é nossa rotina, não cessa de girar. se seu lábio à míngua vai, na minha boca sua língua vem. vem beber minha saliva lasciva, vinho incolor. nos seus olhos o inverno vai, do seu colo materno vem um calor, me procura e me jura ser de andor.
todo caminho é resposta, e toda resposta, menina, encontra quem procurar. toda jornada é uma aposta, e a sorte oposta ilumina quem flerta com o azar. se não há o sol da manhã, existe o sol de amanhã. se não há sol amanhã, aproveite o sol da manhã.
bem me quer

parte mel e parte insônia, o inseto que me tece o véu. cancelada a cerimônia, derrete as flores e o anel. olha: está de partida o trem que nos deixou aqui. deixa a ferida se abrir. te querer, não quero mais. não quero o que mal me quer. perceber a flor capaz de dar tudo que houver, mesmo que tarde vir, e o que arde ir cobiçar a guirlanda da fronte. se o horizonte der, que a flor do bem me quer me queira. jogo as minhas lembranças todas da janela - se apagar no ar e te levar. hoje eu me peguei colhendo flores bem na hora de esquecer você. hoje eu me peguei cantarolando bem na hora do vazio doer. não quero nada da vida, o que eu menos quero é querer. e se a dor vier, tudo bem, porque sei: bem me quer.
e tudo que há de vir, sempre que eu cair - existem anjos até sob as pontes - eu vou levando até que a flor do bem me quer me queira.
ciranda mineira

o olho de vidro, o ouro de tolo enxerga. o dedo comprido, a mão de dolo enerva, mas juntam as mãos com a oposição e saltam para dançar ciranda. a roda gira, crianças cegas cantam. as cordas da lira, os braços e os pés levantam para quebrar as tábuas do altar ressoam para dançar ciranda. e se, e se fosse? e se nos olharmos sem temor? o que será, será, seja onde for. me dá uma certeza do espinho dessa flor. e se, e se fosse? e se soubermos que é o pavor o frio que rouba todo o meu calor e sou só um arremedo de um medo sem valor. para colher a flor mais linda vem, seja bem vinda ao nosso cordão. para ganhar a rua brinda com a lua finda e canta essa canção. basta bater os pés descalços, o sorriso solto e rir sem pretensão. menina, me ensina a atar um laço, e, se você quiser, te dou meu coração. atrás do portão, estátuas de sal se matam por um coração de vil metal desatam dos dedos os nós, e gritam sem voz e chamam para dançar ciranda.
pietà

eis-me aqui: manso da viagem lenta. com meu fio, teci sem saber meu sudário roto. nos meus pés, calos. nos meus olhos, pregos. na minha boca, há cinzas a arder. há choro e rangem dentes mordem as mãos que partem o pão que amasso e cuspo em pedaços no chão. cortam a voz que prega em vão semeando em terra caieira. vim aqui beber o vinho, sem sua taça recusar. vim dizer que reconheço o troco dos meus beijos dados em sua face serena. e dizer que não mereço mais que seu desprezo, fardo, nem a farda da honra de cortar minhas mãos nos seu cordão de espinhos que faz sua fronte sangrar. de perder meus pés por todos os caminhos que me atrevi a trilhar. devo me calar e reconhecer humildemente o quanto há a se aprender, então deixa a vitória pra lá. que a lição aprendo aqui, e é de saber sorrir enquanto o mundo cai nos meus ombros – vou sustentar a dor sob escombros de seja o que for. no meu peito, um coração pecador, satisfeito, bate sem rancor. dentro de cravos e chagas existem sementes repletas de flores. em cada amarra da corda uma conta me conta que não é possível parar, descansar sem paz, sem um porto, tanto faz. Subo o calvário, imolo meu corpo e me oferto em cima do altar: pietà.
o que sobra do dia

um filete de sangue sobre o cobre, esse vil metal, cobre a língua que lambe, o barqueiro reclame o que sobra do dia. um castelo de areia desmanchando num temporal. da mais forte barreira, a ruína certeira é o que sobra do dia é a dor de ter que ter mais que ter que ser ou saber que o ter tem final. e saber que o saber não se basta a si só, e saber que o ser tem final. uns retratos partidos. sonhos gastos num enxoval. todo medo sentido, e o amor presumido é o que sobra do dia. um silêncio molhado, confissões que não têm final. o erro não perdoado e o nó desatado é o que sobra do dia. um suspiro de vida sobre a lama primordial.
desata

olha que engraçado o desfecho da história, que deboche sutil da memória, das lembranças que vão resistir. olha, que a onda vai e vem ilusória e recusa a areia simplória e não decide ficar nem partir. é o deboche a rir de quem chora mais e sofre mais por se entregar sem medo e tão cedo se deixar levar pelos pardais e tanto faz que caia o reboco que o sufoco que se sente não passa. tudo passa, mas fracassa em passar essa dor, flor que mata e arrebata toda a mata quando o laço com a vida desata. se enxágua, mostra a cicatriz. lição: não há final feliz nessa história transitória – vai passar. resta a ruína de um sorriso pra contar que olha, que piada mais contraditória, que a coragem desponta sem glória dos escombros da humilhação e transforma em vilão o que chora mais.